Autoria: Isadora Ataíde
 

Eu moro na Achada Santo António, em Praia, nesta madrugada choveu. Barulho de chuva, cheiro de chuva e a chuva através da luz do poste na noite escura são imagens universais, evocam significados comuns, partilhados. Porém, adormecer com o ruído da chuva em Cabo Verde traz um conforto inigualável. É como estar em casa, o aconchego do conhecido, um lençol que se puxa, a incessante chuva a cair, como um milagre, nos faz crer estar em outro tempo, noutro espaço.
A Achada fica num dos platôs da Praia. Na entrada, com o porto aos seus pés e o convento amarelo-sujo com seu resistente farol, o restaurante Poeta. Logo em frente o Plaza, atrás o Ministério dos Negócios Estrangeiros, o divisor da Achada. Dois reinos. O primeiro da Assembléia Nacional, da Embaixada Portuguesa, das calçadas, do banco, do supermercado, dos consultórios médicos e da classe média.
O Brasil – a zona mais pobre e suja, pouco iluminada, onde as sardinhas ardem em churrasqueiras improvisadas sobre a terra, brigando por espaço com o lixo – é sinistro. Ducado dos thugs, das drogas e da violência, demarca a entrada na outra margem da Achada.
Os thugs são grupos de jovens que importaram comportamentos norte-americanos. Vestem camisetas dos times de basketball e calças largas, ouvem rap e conversam em inglês. Alguns dos thugs são cabo-verdianos deportados dos Estados Unidos. Emigraram na infância, desconhecem o português e o crioulo, não possuem laços afetivos ou identidade cultural com o país. Os repatriados cometeram crimes, em geral tráfico de drogas, assaltos e violência contra às mulheres. Em 2003 o tráfico de drogas “apagou” 17 pessoas em Praia. Entre os assassinos estavam deportados e thugs. Contudo, nem todo deportado é um thug, nem todo thug está no crime.
Mais a frente a Boca Doce, padaria com saborosos croissant, onde os clientes levam sacos de pano no fim de tarde para serem abastecidos de pão. Os quatro jornais do país – Expresso das Ilhas, A Semana, A Nação e o Jornal de Cabo Verde, todos semanários – são encontrados lá. Também os cigarros, Marlboro e a sua versão light, as marcas comercializadas no país.
A capela Santo Antênio é azul, muito pequena para os fiéis da região, que levam os seus bancos ao domingo e do lado de fora entoam suas preces. A direita, ao fundo, o Mercado da ASA. Encontram-se verduras e produtos cosméticos em balcões de concreto. Um porquinho negro, a crescer e a engordar, dorme na entrada, amarrado ao poste. O chafariz, o lugar mais importante do bairro, fica a 20 metros. Moramos na direção oposta.
Na esquina uma casa sempre fechada, ocasionalmente uma janela ou a porta é entreaberta para alguma entrega rápida aos clientes ansiosos. Ao lado, numa casa sem teto ou aberturas, garotos praticam exercícios em estruturas de ferro, gostam de posar para fotos com suas namoradas. Mais dois passos e uma vendedeira comercializa limões e balas, o que calhar, numa bancada de madeira velha e escura.
Então a minha casa. Moro no terceiro andar de uma rua sem nome, num prédio sem nome. Fica em frente à Sonasa, uma empresa de segurança, e à Igreja Adventista. Por volta das quatro da manhã arranca o ônibus da empresa. As oito começam os cânticos na igreja. Há milhares de cachoros na cidade, uma turba deles na minha rua. Esqueléticos e sarnentos, mas sempre com força para latir, brigar, lutar por sua poça e sombra. Um cabideiro com vestidos, saias e calças vindas dos Estados Unidos ou da Europa, ornamenta a entrada do prédio.
Água
Em Cabo Verde a água chega por volta das sete da manhã a cada dois dias. Somos três em dois apartamentos, porém, temos uma única cozinha, o que potencializa a demanda no terceiro andar. Em suma, estamos sempre sem água. Hoje é domingo, ontem não fomos abastecidos, há uma promessa. Experimento todas as torneiras, nem uma gota.
No rés do chão fica o reservatório do prédio, os registros e o motor que bombeia a água para as caixas que ficam no telhado. Cada apartamento tem a sua, com capacidade para 500 litros. Com a seca o cano fica repleto de ar, o que impede o abastecimento das caixas. Se a água não sobe o reservatório enche até o limite e cessa o fluxo da rede. É preciso ser rápido. Duas pessoas no prédio conhecem o segredo do cano. O vizinho Nelson, que trabalhou até de madrugada no aeroporto e está a dormir, os filhos e a esposa não ousam acordá-lo. Ele é alto e forte, não carrega água, mas também não ensina o mistério do cano, “coisa de homem”. Ele é o guardião da chave do reservatório.
Sem alternativas acordo o Vince. Pego a chave no vizinho. O primeiro passo é fechar os registros. Abre-se a tampa do reservatório, tira-se o ar simplesmente sacudindo o cano por cerca de quinze minutos, intercalados pela liberação do ar através de uma válvula do motor. É preciso estar atento ao barulho específico da água quando esta começa a subir, caso contrário será preciso reiniciar a operação.
A água da rede já parou de chegar, nos resta apenas a do reservatório. Ficamos tentados a fechar o registro dos vizinhos e deixar subir a água apenas para as nossas caixas. Foi uma grande decepção descobrir que a moradora do 4º esquerdo rouba água direto da nossa caixa para suas bombonas. Nosso espírito solidário predomina. Sem entrar água da rua é impossível encher o bidão de 20 litros e 12 bombonas de cinco litros, que nos permitem banho, comida e lavar louça durante a seca.
Torneira fechada
De fato andamos com sorte, há duas semanas não falta luz. A energia elétrica em Cabo Verde é através de geradores movidos a óleo diesel. A Electra (empresa majoritariamente pública) está falida, deve 800 milhões de euros aos fornecedores, Shell e Enacol. Os cortes de luz têm um roteiro programado pelos bairros da cidade. Se calhar de faltar luz no dia da água, é impossível o motor funcionar. Se faltar luz falta água.
Em situações dramáticas recorre-se ao chafariz. Coloca-se um vestidinho velho, arma-se de bom humor e das bombonas. Cada cinco litros custam seis escudos. É preciso ir cedo, pois são muitos os clientes. Eu não consigo carregar o bidão na cabeça, sequer levantá-lo, por isso faço várias viagens com as bombonas de cinco litros. Os homens não cometem a “desonra” de carregar água, mas ajudam a encher os recipientes e colocá-los na cabeça das mulheres. Explicam-me que não há fila, que é preciso ir em frente e garantir a minha água. Ficam surpresas com a minha presença, mas percebo uma solidariedade oriunda do compartilhar a dificuldade.
No primeiro dia em Cabo Verde aprendi a escovar os dentes com a torneira fechada. Diga-se, aprendi a tomar banho com o duche fechado. Na verdade nunca é possível utilizar o duche como tal, pois não há pressão o bastante para deixá-lo pendurado. “Água quente” é uma expressão ou um conceito, jamais uma realidade, que perdeu por completo o seu significado.
Preciso de quatro bombonas para tomar um banho. Duas para o cabelo e duas para o corpo. É possível economizar um pouco mais, mas o esforço para trazer a água do chafariz me torna perdulária: “Eu mereço”, digo-me. A falta d’água nos torna insanos. Outro dia surpreendi-me a deixar um recipiente cheio de água limpa aberto.
Com excessão da Ilha da Brava e de Santo Antão, não existe água em Cabo Verde. A água do mar é dessalinizada e utilizada em todas as atividades necessárias a vida. Em que pese o tratamento, em geral a água é turva, não se pode beber nem cozinhar antes de fervê-la por quinze minutos. A água encanada não chegou a milhares de pessoas, que dependem exclusivamente do chafariz ou dos camiões-tanques (públicos e privados) nas zonas mais distantes.
Há um diferença substancial, existencial é o termo correto, entre conhecer teoricamente o problema da água e experimentá-lo, não experimentar como quem prova um doce, mas na convivência íntima.
E aos poucos, no meu caso, 500 anos para os cabo-verdianos, acostumamo-nos a falta d’água. A energia é gasta na caminhada até a fonte, nos braços e cabeças cansadas de carregar água. A seca imiscuiu-se na rotina, tornou-se cultural. A sociedade não pergunta e não se queixa, o Estado não tem recursos para introduzir tecnologias que solucionem a falta d’água. Pergunto-me se o almejado “Estatuto Especial” com a União Européia trará alguma alínea referente à água. E o povo? Ah, o povo passa fome, e sede, e espera um milagre de Santo António.